
Entrevista: Projetos de lei que visam o funk geram debate sobre liberdade artística em Belo Horizonte
Crédito: Sofia Arnaud Fotógrafa
“A arte precisa ser solução, não alvo”, diz Maria Laura Tergilene empresária cultural e CEO da Fábrica Criativa
Em tramitação na Câmara Municipal de Belo Horizonte, os Projetos de Lei 89/2025 e 25/2025 propõem restrições a conteúdos musicais considerados ofensivos ou com suposta apologia ao crime. Apesar da intenção de combater discursos violentos, as propostas têm gerado reação de artistas, produtores culturais e defensores da liberdade artística, que apontam um risco de criminalização do funk e do trap, dois gêneros que nasceram nas periferias e se tornaram caminhos de ascensão social para vários jovens espalhados não só pela capital mineira, mas por todo Brasil.
Para entender o impacto dessas medidas na cultura urbana e nos movimentos que atuam por meio da arte, conversamos com Maria Laura Tergilene, empresária cultural e CEO da Fábrica Criativa. Há mais de uma década à frente de iniciativas que desenvolvem talentos da música nas periferias, ela defende que a arte é um instrumento poderoso de transformação e que tentar silenciar vozes periféricas é, além de injusto, um retrocesso social.

Como diferenciar liberdade de expressão artística de apologia ao crime em letras de música? É possível falar sobre isso sem censura?
Apologia é uma narrativa direta de incentivo ao crime, incentivando o público a fazer algo ilegal. Isso é diferente de letras que descrevem um acontecimento, que basicamente narram uma realidade onde o crime está presente, como um filme ou novela. A censura na arte é algo muito delicado, especialmente porque vivemos sob uma lei de liberdade de expressão. A arte trabalha com metáforas e histórias, é perigoso legislar sobre o que pode ou não ser dito em um gênero artístico.
De que forma o funk e o trap têm atuado como ferramentas reais de ascensão social e econômica nas periferias?
Funk e trap são formas legítimas de gerar renda sem a necessidade de escolaridade formal. Com talento e poucos equipamentos, jovens podem lançar músicas, gerar streamings, fazer shows e receber direitos autorais. São gêneros acessíveis, com alto poder de viralização. Muitos mudaram de vida e não só eles: produtores, DJs, dançarinas e outros profissionais ao redor também tiveram sua história mudada.
Projetos de lei como os que tramitam em Belo Horizonte podem ser considerados uma forma de censura cultural?
Sim. A última vez que vimos censura com esse impacto foi na ditadura militar. Hoje, a música urbana ganhou uma proporção muito grande, principalmente com o TikTok. O funk de BH, inclusive, figurou por anos entre os estilos mais ouvidos do Brasil. Esses PLs querem controlar um movimento que não conseguiram entender ou aceitar.
Como políticas públicas poderiam estimular letras mais conscientes sem reprimir a vivência e a identidade dos artistas? Há alternativas?
Sim. Editais públicos que estimulem letras limpas podem abrir portas. Se houver apoio financeiro real para quem nunca teve acesso a nada, isso muda o jogo. Os artistas vão querer participar e vão adaptar suas narrativas. É incentivo, não censura.

Artistas como Xenon conseguem mudar suas letras à medida que suas realidades evoluem. Isso poderia ser um argumento contra a ideia do funk como algo negativo?
Com certeza. O novo lançamento dele é a prova disso. Compositor canta o que vive. Se está em paz, canta paz. Se está em guerra, canta guerra. Xenon mudou de vida pela música e a música dele mudou junto. Isso é arte: reflexo da vivência.
De que maneira a arte pode ser usada como política pública para prevenção à criminalidade, em vez de ser tratada como parte do problema?
Na Fábrica Criativa, a gente vê isso todos os dias. Quando um jovem da quebrada entende que pode viver de arte, que pode criar e ser ouvido, tudo muda. Ele enxerga um futuro limpo, digno. A música gera autoestima, renda e esperança. Em vez de ser uma ameaça, a arte tem que ser tratada como solução. Investir em cultura é tirar gente da rota do crime.
Como a atuação de movimentos culturais, como a Fábrica Criativa, pode influenciar no combate às desigualdades e até mesmo ao preconceito contra o funk?
A gente valoriza o funk de verdade. Damos capacitação gratuita para artistas da quebrada e espaço para que eles se profissionalizem sem perder a essência. Também levamos o funk para espaços onde ele ainda sofre preconceito. No nosso Seminário de Música Mineira, por exemplo, o funk sempre esteve nos palcos. É dando visibilidade e criando pontes que mudamos realidades.
Existe um tratamento desigual entre gêneros musicais populares da periferia e outros estilos quando se trata de liberdade artística?
Sim. Historicamente, o funk foi criminalizado. A “Lei Anti-Funk” no Rio de Janeiro, nos anos 2000, é só um exemplo. Outros estilos que falam sobre violência, como o rock, por exemplo, nunca foram tratados da mesma forma. Há um preconceito social e racial por trás disso.
Acredita que desmistificar a ideia de que o funk e trap são ferramentas de apologia ao crime seja um dos maiores desafios?
Sem dúvida. As PLs citam todos os estilos de forma genérica, mas o foco é evidente: funk e trap. Precisamos reforçar que música é manifestação cultural e que liberdade de expressão é direito garantido. Censurar esses gêneros é atacar diretamente as vozes das periferias.
No contexto atual, perante tudo que você já acompanhou dos artistas, o que a Fábrica representa para você?
A Fábrica é um lugar de esperança. A gente oferece estrutura, apoio e visibilidade para uma classe esquecida e muitas vezes marginalizada. Estamos ajudando a construir histórias de sucesso com impacto social real. É um caminho para quem quer viver da música e mudar de vida com dignidade.