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Elas no comércio: Quando nunca é tarde para empreender

Mesmo com progressos no panorama brasileiro para mulheres, persistem desafios na trajetória daquelas que almejam possuir seu próprio estabelecimento; veja histórias de comerciantes da capital mineira que agregam valor por onde passam e se adaptam aos desafios

*Reportagem de Dione Alves

BELO HORIZONTE – Aos 66 anos, Maria Eudiléia dos Santos tem um currículo extenso. Já foi fiscal do Ministério Público do Trabalho em Minas Gerais (MPT-MG) e advogada da União, oportunidades que conseguiu após se graduar na universidade com o dinheiro da venda de bolos que ela preparava. Essa habilidade na confeitaria também lhe rendeu algumas vagas temporárias de auxiliar de cozinha no comércio de Belo Horizonte na década de 70.

O que Maria Eudiléia não imaginava, naquela época, é que seria possível redescobrir o prazer de trabalhar mesmo após se aposentar do serviço público. Foi quando ela abriu uma floricultura no bairro Floresta, na região Leste da capital, onde comercializa espécies de plantas e itens de decoração que dão um toque de classe aos arranjos que produz. A aposentada que também é microempreendedora individual (MEI) não só administra, como também participa da arrumação e das vendas.

“Me aposentei muito jovem, com 51 anos, há 15 anos. Agora acabo trabalhando mais do que antes, mas também sou muito empolgada com o que faço. Cada vez que noto um cliente sair feliz daqui por conta do meu trabalho, eu ganho o meu dia”, diz.  

O empreendedorismo feminino desponta como uma força motriz essencial na economia brasileira. Com aproximadamente 30 milhões de mulheres à frente de 52% dos negócios do país, conforme dados da Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas (CNDL), a contribuição delas vai muito além da geração de renda e empregos.

Adicionalmente, negócios liderados por mulheres tendem a ser mais inclusivos, frequentemente priorizando a contratação de outras mulheres. Esse movimento não só fortalece a rede de apoio feminina, mas também impulsiona a equidade de gênero no mercado de trabalho.

Na maior favela de Minas, sonho ajudou a ‘lavar’ barreiras

Na loja de Edivânia Cruz, uma lavanderia no Aglomerado da Serra, em Belo Horizonte, o movimento é pra valer. Das 8h às 23h, de segunda a sábado, ela cuida do seu estabelecimento. A clientela é fiel e a única funcionária, Joyce da Silva já tem carteira assinada. A proprietária garante que a loja está só começando.

“Hoje, graças a Deus, tenho aproximadamente 90 clientes. É um negócio que surgiu há pouco tempo, porém está caminhando bem. A minha vontade agora é pegar a parte de cima da loja, que estou aos poucos construindo, e colocar ali o serviço de passadoria”.

Edivânia Cruz sonha em expandir lavanderia nos próximos meses. Crédito: Dione Alves/O Contorno de BH

Ela ainda diz: “Fico sonhando em cada canto, em crescer meu espaço e, futuramente, ter várias passadeiras trabalhando comigo, vendo um monte de roupas penduradas e entregando por motoboy“.

Segundo a comerciante, ela não imaginava o sucesso que a lojinha poderia ter. “Eu pensava que poderia ter algum tipo de sucesso lá embaixo, no asfalto, e não aqui na comunidade. Mas, a comunidade acabou me surpreendendo”, diz. O Aglomerado da Serra, mais precisamente, é a maior favela de Minas e está localizada na zona Sul da capital.

Em 2023, Edivânia Cruz estava desempregada e sem dinheiro, mas tinha uma intuição e uma enorme vontade de vencer. A lavanderia começou como a maioria dos empreendimentos no Brasil: bem pequena e em casa mesmo. “As máquinas ocupavam vários espaços. Tinha uma na cozinha, ao lado do fogão e da pia, e outra que ficava junto com uma secadora em um quarto que precisei adaptar. Já as roupas prontas, separava numa mesa que tenho na sala ou em caixas”, relembra.

O primeiro passo para sair de casa foi usar um trailer de lanches emprestado por um vizinho que já estava sem uso. “Foi assim que tudo começou e depois passei a ganhar até mais do que meu próprio esposo”.

Negócio já conta com aproximadamente 90 clientes cadastradas. Crédito: Dione Alves/O Contorno de BH

Na expectativa de que tudo daria certo, ela ainda relembra que naquela época foi feita uma aposta com o marido: “Conversei com ele que, se a gente passasse dos seis meses iniciais e não quebrasse, iríamos em frente. E, quando chegou aos seis meses, fizemos um churrasco com os nossos amigos e alguns parentes. Foi quando pensei comigo que agora não quebra mais”.

Cada centavo conta

Antiga moradora de Itinga, um pequeno município no Vale do Jequitinhonha, com 13,9 mil habitantes, Francisca Fernandes sempre foi uma mulher de múltiplas tarefas. Para ela, superar desafios sempre foi parte de um caminho marcado por dificuldades. “Já trabalhei com costura para funerária, fiz uniformes para creche, já fui também cozinheira, cuidei de criança e fiz arranjos para noivas. Tentei de tudo para transformar minha realidade”, relembra.

Analfabeta e trabalhando na informalidade, Francisca Fernandes enfrentou dificuldades financeiras. “Já tive o tempo em que não podia alimentar meu filho mais velho e me sentia impotente por não conseguir trabalhar, tudo em função de não saber ler nem escrever”, diz.

Seu marido, mecânico, tinha um bom salário, mas após um acidente de trabalho em 2017, Francisca precisou se reinventar mais uma vez. No mesmo ano, mudou-se com a família para o bairro São João Batista, na região de Venda Nova, em Belo Horizonte, e começou a criar figuras em biscuit, uma técnica artesanal que havia visto na televisão. Como a matéria-prima era cara, ela experimentou com o que tinha em casa: óleo, goma de mandioca e vinagre.

“Tinha pessoa que comprava apenas para ajudar, outras eram mais sinceras e diziam que não era muito bonito, mas mesmo assim tentava levar a vida. Tentei de diversas formas até chegar ao resultado desejado, mas o ponto de virada foi quando testei a massa do biscuit com sabonete”.

As dificuldades na produção e na venda não a fizeram Francisca Fernandes desistir. Hoje, as peças que comercializa nas redes sociais retratam personagens como Lampião e Maria Bonita, que, assim como ela, nunca fugiram da luta.

Francisca Fernandes se especializou e formalizou o próprio negócio para atender demanda. Crédito: Francisca Biscuit/O Contorno de BH

“Tudo melhorou após um curso que fiz de artesanato, onde aprendi as técnicas. Atualmente, sou MEI, mas não estou sozinha, pois também trabalho com meu esposo na produção”. Somente em 2024, o negócio de dona Francisca já cresceu aproximadamente 40%, totalizando em um mix de 600 produtos.

“Hoje, muita gente que diz: ‘ah, mas na internet tem mais barato’. Mas o meu produto é feito à mão, tem cuidado, tem carinho. Meu produto não tem só preço, ele tem valor”, afirma Francisca.

Mulheres se unem para compartilhar e viver a tecnologia

Os “cabelos prateados” são frequentemente associados à sabedoria e experiência, uma imagem que pode até conferir uma vantagem competitiva no ambiente de trabalho. No entanto, essa visão nem sempre se traduz em oportunidades equitativas, especialmente em estabelecimentos que demandam o uso constante de tecnologias, frequentemente dominados por uma mentalidade mais “jovem”.

Mulheres acima dos 65 anos enfrentam o duplo desafio no mercado de trabalho: o etarismo e o machismo. Crédito: Tânia Rêgo

Para as mulheres, o desafio é ainda maior. Além do etarismo, elas também enfrentam o machismo, e batalham contra a dupla discriminação: a de idade e a de gênero. Saber do tamanho da luta por trás da história torna a experiência de Mercedes Luzia Miguel ainda mais inspiradora. Aos 66 anos, ela se lançou recentemente nos estudos de Programação, conciliando com seu tempo livre. A outra parte do dia, ela está atuando profissionalmente em um restaurante dentro do Mercado Central, no Hipercentro.

Aposentada, Mercedes Miguel não vê a idade como uma barreira para o aprendizado em tecnologia. Sua filha, Maria Isabel que empreende há 12 anos como programadora e consultora de marketing e vendas para lojistas e vendedoras é a principal incentivadora. Com muito bom humor, ela questiona: “Quem disse que tecnologia é só para os jovens? Foi minha filha que me incentivou a sair do conforto da minha cadeira e me aventurar nesse campo. Ver os jovens inovando e brincando com inteligência artificial é algo fantástico”.

Para Maria Isabel, a trajetória da mãe não apenas desafia estereótipos relacionados à idade, mas também ressalta uma mudança cultural que pode ser adotada pelas empresas e projetos sociais espalhados por Belo Horizonte, que segundo ela, não são muitos. “Ao abraçar tantas as mulheres que sonham em investir no futuro, independente da idade, da profissão, da meta, o comércio diverso passa a ser enriquecido de oportunidades”, diz.

Atualmente, Maria Isabel não somente apoia a própria mãe, como também desenvolveu e opera um centro de capacitação tecnológica em um imóvel comercial próprio, localizado próximo à sua residência no bairro Sagrada Família, na zona Leste de Belo Horizonte. Neste espaço dedicado ao aprendizado colaborativo, elas recebem outras mulheres, compartilham conhecimento e promovem o desenvolvimento de habilidades essenciais em programação básica.

“Somos em 14 mulheres, em que a cada dia me surpreendo com elas. O interesse em que elas possuem e a vontade de aprender mais e mais tem sido a virada de chave. Penso que com uma vasta gama de experiências e diversidade seja no empreendedorismo feminino, seja na geração de empregos por parte do comércio, todas nós que temos perspectivas podemos ajudar a pavimentar um caminho para um futuro mais inclusivo e produtivo”.

Mercedes Miguel afirma: “Sempre ouvia dos meus pais que nunca é tarde para aprender e empreender. Hoje, repito isso para a minha filha, e ela me diz o mesmo. Isso é bom porque sinto que não devo desistir de mim mesma e quem sabe posso ajudá-la, em breve”, reflete.

A atuação feminina sempre será necessária para o comércio de BH, diz socióloga

Para a professora especialista em Antropologia e Sociologia da UFMG, Cláudia Meirelles, as mulheres que comandam ou são colaboradoras em estabelecimentos comerciais da cidade ainda enfrentam alguns desafios. Segundo a docente, apesar do aumento de comércios ocupados e liderados por mulheres no País, a desigualdade de gênero ainda é significativa, tanto na gestão dos estabelecimentos, quanto no acesso ao crédito.

“É necessário incentivar as mulheres a realmente investirem em modelos de negócios. É sabido que grande parte dessas mulheres que optam por criar a própria lojinha ou outro tipo de negócio por necessidade. Para se ter uma ideia, nos últimos anos, o índice de empreendedorismo feminino aumentou cerca de 40% no Brasil”.

Ela continua: “É claro que, além disso, o perfil de comerciantes brasileiras enfrenta dificuldades para desenvolver seus estabelecimentos devido à carga burocrática, aos impostos elevados e à complexidade do sistema tributário. Logo, a opção do microempreendimento é a alternativa que acaba sendo a mais viável em alguns casos, Entretanto, temos avançado, graças à persistência e a resiliência de tantas mulheres”, afirma.

A socióloga ressalta que políticas públicas e ações de incentivo para que mais mulheres possam abrir lojas, restaurantes, mercadinhos, salões é uma das formas mais viáveis para impulsionar a economia de Belo Horizonte, e acrescenta: “Para isso, é importante promover uma capital mais inclusiva. Uma maneira de alcançar isso seria ensinar equidade de gênero desde a infância e isso é uma tarefa do Poder Executivo e Legislativo municipal em implantar”, diz Cláudia Meirelles que acrescenta: “Nossos filhos e filhas devem crescer compreendendo a igualdade de gênero como algo natural, e não como algo que exija esforço constante”.

Para ela, essa é uma responsabilidade coletiva; em que cada indivíduo pode ser um aliado das mulheres na busca por oportunidades equitativas. “É fundamental superar padrões e barreiras para que isso se concretize. Precisamos assegurar que as mulheres tenham as mesmas oportunidades na educação, na carreira e no desenvolvimento profissional’, conclui.