
Do caderninho ao Pix: retratos de comerciantes mineiros
Empreendedores de Belo Horizonte revelam a saga de atravessar décadas marcadas por crises, modas e tecnologia para manter as portas abertas e a identidade de cidade viva
* Reportagem de Dione Alves
BELO HORIZONTE – Antes do aplicativo de mapas, havia a esquina de referência. Antes do feed de notícias, havia a conversa no balcão. E antes do Pix, havia o caderninho de “fiado”. Essas transições resumem décadas de transformações econômicas e sociais em Belo Horizonte. Para comerciantes que atravessaram esse período, a jornada foi marcada por crises, inovações e uma notável capacidade de adaptação.
É o caso de Luzia Soares, dona de um salão de beleza há 40 anos; de Pedro Miguel Ourives, herdeiro de uma tradicional loja de ferragens; e de Orcinio Gonçalves, mais conhecido como “Careca”, que comanda seu bar há quase cinco décadas. Suas histórias, que se desenrolam em bairros distintos da capital mineira, como São Bento, Floresta e Cachoeirinha, compõem um mosaico da resiliência e da identidade do comércio local.
Para a cabeleireira Luzia Maria Soares, proprietária de um estúdio de beleza no bairro São Bento, na região Centro-Sul da capital, o começo foi marcado pela urgência. Com filhos pequenos para criar, ela se candidatou a uma vaga de manicure mesmo com pouca experiência. “Eu precisava muito do trabalho. Naquele dia, eu machuquei a unha da cliente, tirei bife… foi difícil”, relata. A proprietária do salão pediu que o trabalho fosse refeito. Luzia refez.

Segundo ela, aquele momento foi definidor, ensinando a importância da humildade para aprender e da determinação para executar. A jornada, que começou com a clientela inicial de parentes, como descreve com humor – “Eles vêm porque é de graça. Quando você começa a cobrar, eles somem” –, relembra.
Lembranças do passado que moldam o presente
A alguns quilômetros dali, no bairro Floresta, na região Centro-Sul da capital, Pedro Miguel Ourives aprendia com o pai que o casa de material de construção é um tipo de comércio que quase ninguém sabe a sua real vocação.
“Aprendi com ele, que aqui não é um mero comércio e sim uma parte de um sonho de tantas pessoas que querem construir ou reformar, afinal, do tempo que estamos aqui no bairro, praticamente 48 anos, vimos o bairro se transformar, prédios surgirem, lojas do comércio sendo erguidas. Muita coisa ganhou forma nesse tempo”, conta o empreendedor que está desde 1997 cuidando da Eletru’s Depósito, após o pai comandar o negócio.
Naquela época, ele relembra o seu pai Manoel Ourives vender peças para mestres de obras locais numa semana, com o pagamento registrado em um caderno, a ser quitado no fim do mês. “A gente foi tocando aqui sobre a confiança das pessoas e, graças a Deus, temos clientes de décadas, assim como aparece também jovens, estudantes que moram em repúblicas, querendo tirar dúvidas ou trazendo o celular em mãos para ajudar com algum tutorial para fazer algum reparo em casa ou apartamento”, explica.
Se no bairro Floresta o comércio é parceiro na construção de sonhos de tijolo e cimento, no Cachoeirinha, a aposta em outra matéria-prima – a memória afetiva da roça – deu origem a um dos bares mais icônicos da cidade. Foi lá que, em 1983, a experiência de Orcinio Gonçalves com o gado em sua terra natal, Patos de Minas, deu vida ao Bar do Careca, apelido que o próprio proprietário carrega com orgulho.

Sem formação em gastronomia, ele mesmo pintou o chão de branco já desgastado e dispôs as mesas que, até hoje, testemunham a história do local. Já no cardápio do boteco, desafiou o paladar da época. “Antigamente, língua de boi com dobradinha sofria o maior preconceito. Hoje, vejo crianças virem aqui só para comer língua. E, veja bem, em outros países, a língua de boi é um prato nobre”, enfatiza. Com a iniciativa, Careca não vendia apenas comida, mas quebrava paradigmas culturais a cada prato servido. Hoje já somam 53 anos de uma vida dedicada dentro de botecos, resultando no sucesso do seu próprio bar.
A prova de fogo numa cidade que cresce com crises e concorrência

As décadas seguintes testaram a solidez desses negócios. Planos econômicos, inflação e a chegada de grandes concorrentes exigiram mais do que talento: demandaram estratégia.
Para Luzia, enfrentar a volatilidade das tendências de beleza e a expansão popular de outros salões e estúdios próximos foram alguns dos desafios. Sua resposta não foi a guerra de preços, mas a vontade de fortalecer e fidelizar ainda mais o relacionamento com as suas clientes. “Lógico que hoje existe Instagram, as redes sociais. Mas o boca a boca ainda é a melhor propaganda e isso um vai indicando para o outro. Você consegue ter essa percepção mais fiel das pessoas”, garante a empreendedora.
Para Pedro Ourives, o ponto de inflexão foi a chegada dos home centers em Belo Horizonte. A resposta foi aprofundar sua vocação: a especialização. Enquanto a concorrência massificada oferecia corredores de produtos genéricos, Pedro investiu no capital que os gigantes não possuíam. Ele se tornou o consultor que não apenas vende a peça, mas orienta a instalação, oferecendo um conhecimento técnico e uma confiança que fidelizam a vizinhança. “Isso faz o comércio de bairro ser fiel seja para aquele que compra um parafuso ou para quem quer levar mais produtos”, comenta.

No caso do Bar do Careca, o desafio foi de outra natureza: a popularidade. Com a explosão da cena de botecos em Belo Horizonte, catalisada por festivais como o Comida di Buteco, a vitória que consagrou sua língua de boi como um prato icônico funcionou como um divisor de águas ainda na primeira versão da disputa.
“Após as participações, o estabelecimento passou a ser frequentado por pessoas de todas as classes sociais, algo incomum anteriormente”, observa Careca. O desafio passou a ser gerir o sucesso sem sacrificar a autenticidade que o gerou.
A tecnologia aliada ao tempo
Nos últimos anos, a digitalização dos negócios de bairro não se resumiu a uma simples troca de ferramentas. Para esses comerciantes que construíram suas vidas no analógico, o processo exigiu uma reinvenção diária, onde cada nova tecnologia trouxe consigo tanto soluções quanto armadilhas.
Para a cabeleireira Luzia, o impacto na gestão financeira foi um dos desafios. O que antes era um débito anotado no papel se transformou no que ela define em bom humor de “calote modernizado”. “A cliente promete um Pix ao chegar em casa e simplesmente esquece. Já aconteceu de uma ficar 15 dias sem me pagar”, relata, expondo a vulnerabilidade que acompanha a conveniência digital.

Para outros, o desafio foi transformar a tecnologia em uma aliada. Na Eletru’s do Pedro, a digitalização deu lugar ao WhatsApp como forma de facilitar vendas e consultoria. “Nele, muita gente manda fotos de peças danificadas, aí a gente dá o diagnóstico e o orçamento. É uma forma rápida de atender o problema do cliente”, diz.
O legado além do lucro
Questionados sobre o que os mantém na ativa, os três empreendedores revelam que a motivação transcende o resultado financeiro. É o propósito que ancora a operação diária.
“A vida não é fácil e empreender também não, mas você precisa sempre buscar conhecimento, entender do que está fazendo e ter dedicação. Não adianta montar um salão só porque dá dinheiro se você não entende nada de cabelo”, aconselha Luzia. “É preciso estar à frente do seu negócio, dar atenção aos clientes, tratar bem, sem arrogância. Senão não vai pra frente”, elenca.
Careca, que se orgulha do aprendizado adquirido na prática a ponto de já ter ministrado aulas, afirma: “Carinho é um ingrediente importante. Eu mesmo faço questão de adiantar tudo na cozinha, tempero as carnes e deixo tudo pronto para a noite só finalizar para servir. Faço isso para conseguir dar atenção para quem vem”, diz o comerciante.
E Pedro, ao organizar as mesmas prateleiras que um dia foram de seu pai, define sua missão como a de zelar por um patrimônio da família. “A gente nunca sabe do dia de amanhã, mas nada vai fazer de um bom comércio, se você não tiver empatia para atender e prestar o seu serviço. Eu ainda acho que a solução para um problema pode ser encontrada em uma conversa franca de balcão”, conclui.